FALA PRA ELES QUE É O RAP!
- Gasú
- 13 de nov.
- 6 min de leitura
Atualizado: 14 de nov.
A juventude da quebrada sergipana que se organiza e faz da arte de rua sua força

Na ponte do Bairro Industrial, às margens do Rio Sergipe, geral levanta a mão, vibrando numa mesma frequência. Juventude das distintas paisagens da selva de pedra, que insiste em sonhar no pesadelo e sobreviver no inferno. É a noite de um grande dia para os heróis da palavra de todos os cantos do menor estado do Brasil - afinal, é uma responsa e tanto ter que representar a lírica das terras do cacique Serigy no Duelo Nacional de MCs. Já indicava a socióloga Silvia Rivera Cusicanqui: o hip hop é o novo encontro das células ancestrais.
A essência da velha escola é a mais nova aposta de representação sergipana para o Duelo Nacional de MCs 2025. Durante uma longa batalha de três rounds enfrentando MCs de todo o território sergipano e de diferentes gerações, numa final muito desafiadora contra Sheng, o temido Dragão da Oeste - assim conhecido por simplesmente ser um dos maiores mestres do freestyle da nova escola - quem se consagra como atual campeão do Duelo Estadual de Hip Hop 2025 é um MC conhecido por "saci", em alusão a sua característica touca vermelha.

Jefersson Beethoven Santos Barroso, JBeethoven, Saci, ou simplesmente JayBee, MC da Barra dos Coqueiros consagrado na Batalha da Bandeira, iniciou sua trajetória no rap em 2015, e hoje, aos 28 anos, constrói sua carreira musical através do Santa Cena e da produtora independente Street79, tendo recentemente lançado seu terceiro álbum de estúdio intitulado Real Mtfkr. Sua filha Laura Sophia, de apenas 8 anos, emocionada, comemora: "chorei junto com meu pai, porque ele tá realizando o sonho dele".

Seguindo o calendário do circuito do Duelo Nacional, organizado pelo coletivo Família de Rua, a edição sergipana do Duelo Estadual 2025 contou com várias mãos nessa produção. Foi realizado através de parcerias entre diversos coletivos de cultura urbana e hip hop do Estado como o Coletivo Ideia Chek, a Adjá Produções e o Coletivo Bueiro - única vanguarda feminina de batalhas de rima da cena.


Uma dinâmica que distingue as batalhas de rap que acontecem na capital aracajuana é a batalha de jurados antes do último round, como uma forma de comprovar a proficiência e conhecimento técnico do corpo de jurados que avaliam as rimas. Aqui se revela a seriedade do processo: batalha de rima nunca foi bagunça.
Antes do Duelo iniciar os jurados se enfrentam em algumas batalhas. (Foto Gasú)
A programação contou com diversas intervenções poéticas de slammasters, apresentações de break, batalha de rima e pocket shows de artistas e grupos locais da cultura hip hop. Entre as atrações o grupo de rap feminista Bruxas do Cangaço, os itaporanguenses da Exorbit Mob e a estreia de um novo projeto musical da Adjá Produções, que conta os músicos Marvin Lima, Crispim e o eminente rapper da cena underground, K Hip Hop, o sergipano de Neópolis, numa fusão de rap com sonoridades mais instrumentais e melódicas e outros gêneros de música afrocentrada.
Protagonismo feminino no movimento Hip Hop
Durante o evento, Isa Negratcha, presidente da Frente Estadual de Mulheres no Hip Hop, nossa embaixadora do Érre-a-pê, em Sergipe, sublinhou o protagonismo feminino na linha de frente da organização do movimento hip hop, destacando a correria dobrada das minas que são mães e ainda assim ocupam lugares fundamentais na cena, verdadeiras peças-chave no fomento à cultura periférica.

Inclusive, a presença de mulheres MCs no duelo estadual também foi excepcional. Duas jóias raras do underground sergipano: de um lado, Manu Caiane - deusa da rima, vinda direto da Zona Oeste, cria do Bueiro, mãe de Latifa, que tem uma caminhada de respeito e engajamento no movimento hip hop há mais de oito anos - do outro a Anabê, MC consagrada da nova geração, diretamente de Socorro, Zona Norte, que com apenas 17 anos já percorre uma trajetória consistente, ganhando notoriedade na cena pelo seu talento precoce, marcada por uma técnica exímia e amadurecida de freestyle e improviso.
Com o fervor pós Fórum Nacional de Mulheres no Hip Hop (FNMH2) desse ano, o desempenho delas foi um show à parte. Lírica de sobra, autoconfiança estralando, muito poder e maestria: elas representaram a potência das vozes femininas no freestyle sergipano com avidez, sem nenhum temor.
Anabê se destaca e se mantém na batalha até o segundo round, enfrentando Concreto MC e JBeethoven. (Fotos: Gasú)
Manu Caiane derrota Lave MC na primeira fase, e na segunda enfrenta Hellbala, o demônio da Norte. (Fotos: Gasú)
Hip Hop no interior sergipano
Outra discussão fundamental, abordada pelos próprios MCs e corpo organizador, foi a difícil realidade de acesso a lazer e cultura vivenciada pela juventude das cidades de interior, afinal, se essas crianças e adolescentes não estão em espaços culturais, aonde é que elas estão? MCs de Carira, Itabaiana, Tobias Barreto, Nossa Senhora do Socorro, São Cristóvão, grande Aracaju e Barra dos Coqueiros participaram do circuito marcando sua passagem com originalidade, destreza e resistência.
É preciso falar da sergipanidade
A sergipanidade foi um tema central de reflexão e identificação entre os artistas do circuito, funcionando de certa forma como um panorama da cultura urbana em Sergipe, trazendo as marcas e a realidade de seus territórios nas rimas. Questões como dificuldades de fomento e apoio cultural, principalmente nos interiores, irrompem também como uma denúncia e um laudo geral da cultura urbana nesses lugares.
A necessidade de se unir e se fortalecer ao longo de todo o território sergipano, dada as dificuldades de incentivo à cultura e à semelhança de vivências e dores, como a xenofobia enfrentada em outros espaços fora do nosso Estado, foi uma das pautas apontadas pelo último representante sergipano no Duelo Nacional de MCs 2024, Hellbala - o "demônio da Norte", expoente de uma geração, mestre da palavra, MC de máxima patente, guru do ritmo e da poesia, célebre por suas construções inteligentes e versos criativos de brilhante quilate dotados de lirismo, política, filosofia e vivência das ruas.
Hellbala, o “demônio” da Norte também se fez presente no Duelo. O artista também se destaca por ter se classificado para representar Sergipe no circuito nacional de poesia falada Slam BR 2024, viajando no dia 20 de novembro para o Festival Literário de Igualdade Racial (FLIR) no Rio de Janeiro, na cidade de Madureira.
Desse modo, o duelo se reverte também como uma boa oportunidade de discussão por mais políticas de incentivo no estado para o movimento hip hop que com ímpeto ancestral e resistência se mantém ativo por todas as zonas da cidade o ano inteiro muitas vezes sem nenhum apoio, e que, apesar de ser ignorado, negligenciado e invisibilizado pelo governo por se tratar de uma cultura periférica, segue elevando o nome de Sergipe nos mais diversos circuitos de arte do país.
Hip Hop é Ubuntu
A ancestralidade não ficou de fora dessa, e atravessou as falas de muitos MCs, destacando que, para que eles, como pessoas racializadas, alcançassem seus sonhos, ver outras pessoas como eles ocupando esses lugares de representação no passado foi importante. Como desabafa Kayan MC " ser rapper, artista de rua, poeta, MC, precisou ser o sonho dos mais velhos da antiga escola pra que fosse um sonho meu também", reverenciando essa caminhada ancestral também como grande fonte de referência e inspiração.
Vale lembrar que a cultura hip hop e a arte de rua salvam a vida de vários jovens que vivem as mazelas da cidade nas periferias. Na camisa de Kayan, a saudosa imagem de Meruz e Abdias ecoam em manifesto pela memória daqueles que jamais morrerão. Como uma cultura urbana, dentro de um contexto capitalista colonial violento, o rap se torna refúgio e tecnologia de escuta, articulação, futuro, transformação e inclusão social da juventude periférica.

Novos rumos, novas ideias, a arte de rua é resistência diária em doses de cura, vida, revolução e empoderamento pra quebrada, acolhendo corpos dissidentes e todos aqueles que se encontram à margem. Contra o sistema, toda a potência e conquista das almas inquietas subjugadas na selva de pedra que seguirão transgredindo as lógicas e reescrevendo a nossa história.
Por: Gasú
Supervisão: Viviane Silva
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