Em meio ao silenciamento da periferia, artistas sergipanos evidenciam a potência da arte da quebrada
- Mateus Ferreira

- 23 de set.
- 11 min de leitura

“Muita gente que é da nossa cultura, vai pra ela porque ama o hip hop, porque ama a música e quer dar uma condição melhor pra família. A gente só quer uma casa boa e ver a nossa família bem. E pra isso a gente também precisa denunciar o que falta na comunidade: saneamento básico e dignidade.” A fala de SkallifaMC, rapper sergipano de 24 anos, sintetiza uma das funções que a arte que é feita na periferia possui: expor contradições, protestar contra as ausências do poder público e afirmar que a vida na periferia é tão legítima quanto qualquer outra.

Na quebrada, cada batida de funk ou verso de rap conta uma história de resistência, identidade e pertencimento. Mas essas expressões culturais frequentemente são tratadas como problemas de segurança pública. Festas, bailes funk, batalhas de rap ou qualquer outra linguagem que fuja dos padrões elitistas da sociedade, constantemente são alvos de vigilância e repressão policial.
Nos últimos meses, a marginalização da cultura periférica voltou a ganhar atenção após episódios como a prisão do funkeiro MC Poze do Rodo, acusado de associação ao tráfico, e a apresentação do Projeto de Lei (PL) em São Paulo conhecido como “PL anti-Oruam”, que veta a contratação de artistas de rap e funk em eventos públicos sob a justificativa de promoção de facções criminosas.

A associação entre arte periférica e crime não é algo recente. O funk, o rap e o trap são só os alvos da vez, mas em outras décadas, outras manifestações culturais, como o samba e a capoeira já estiveram na mira. No início do século XX, o samba, que hoje é elemento de grande importância da cultura brasileira e que é respeitado mundialmente, também já foi perseguido.
No entanto, com um tempo, o gênero foi adotado pelo Estado como símbolo nacional, principalmente, no governo de Getúlio Vargas. Porém, isso também contribuiu para que o samba fosse diversas vezes embranquecido e mercantilizado, coisa que vem ocorrendo também com o funk, que ganhou novas vertentes e chegou a ser utilizado em jingles de campanhas políticas.
Esse é o caso do vereador Rubinho Nunes (União Brasil), atualmente presidente da CPI dos Pancadões na Câmara Municipal de São Paulo, que investiga falhas na fiscalização de eventos e possíveis vínculos com o crime. A postura do vereador evidencia uma contradição: ele explora o funk em sua campanha para se aproximar do público, mas depois de eleito, trabalha para criminalizar o ritmo. A postura do político contribui para reforçar narrativas que criminalizam a cultura da periferia.
Se o samba já sofreu perseguição e o funk, o rap e o trap hoje enfrentam vigilância e estigmas, como esses padrões de marginalização se manifestam na realidade local? Para responder, conversamos com artistas e produtores de Sergipe, que relatam como o preconceito, a repressão e a falta de políticas públicas influenciam diretamente sua criação artística.
O PREÇO DA CRIAÇÃO
“Minha arte é baseada no que eu sinto e vivo. Falo do que eu, meus irmãos e irmãs passamos todos os dias. As letras falam de violência policial, de falta de oportunidade, da força das mulheres para autoafirmação de representatividade, mas também de resistência, de amor e de orgulho da nossa identidade. Eu acredito que o rap é um documento histórico da periferia, e cada verso é um registro de luta e sobrevivência”, ressalta a rapper Daniele Pereira, mais conhecida como Dani Bruxa.
Dani Bruxa faz parte do do coletivo Bruxas do Cangaço. A rapper, que atua na cena da Zona Oeste de São Cristóvão desde 2016, afirma com convicção: “Com minhas letras eu denuncio as injustiças sociais e valorizo a vivência do povo preto e periférico”. Mas o preço de transformar denúncia em flow, no entanto, se revela nas próprias apresentações. “Já sofri repressão policial várias vezes. Pelo Coletivo Bueiro, a gente organiza batalhas desde 2018. Antigamente, a gente fazia toda quinta na feira da praça do Rosa Elze e quase em toda edição, a polícia parava pra meter medo no pessoal. Quando não chegavam e mandavam acabar o rolê, ficavam rondando o tempo todo", diz.

“Uma vez, meu show foi cancelado em cima da hora por ‘questões de segurança’, mas na real era preconceito mesmo, pelo conteúdo das letras. Em outro festival organizado por gestores públicos, colocaram um som que não era próprio pros beats baterem. A gente pediu pra aumentar e o rapaz disse que não ia queimar o som dele. Quando comecei a falar no microfone que quem chama a gente pra cantar precisa conhecer de fato o movimento e suas especificidades, como o tipo de som, o conteúdo das letras e a estética da periferia, cortaram o microfone enquanto eu falava”, desabafa a rapper.
As dificuldades relatadas por Dani não são isoladas. O preconceito contra a arte periférica aparece também no relato de Isabelly Lima, a Mali, que há oito anos integra a cena. Para ela, a presença policial em espaços de cultura da quebrada é quase uma constante. “Vinda do interior para a capital, passei a ter maior contato com esse tipo de pressão em movimentos de São Cristóvão e também em bairros como Rosa Maria, Quilombo e Maria do Carmo”, afirma. Ela lembra que em uma dessas situações, um grupo de policiais tentou impedir a realização de um evento organizado coletivamente. “Nunca aconteceu diretamente comigo, mas já vi de perto tentarem barrar atividades culturais por pura repressão.”
Para Mali, a associação entre crime e arte periférica atinge diretamente sua trajetória como artista. “O rap fala de histórias reais, mas acaba sendo tratado como crime pela lógica racista e colonial do Estado, que criminaliza corpos pretos de periferia”, declara. A rapper diz que essa visão limita a forma como seu trabalho é recebido. “Quando uso a rima para expor contradições e alertar sobre as armadilhas do Estado, minha arte passa a ser vista como ameaça.”

Jhully Souza, produtora cultural em Aracaju desde 2015, reforça que essa repressão tem função política. “Ainda existe muita repressão quando alguém canta o que realmente acontece nas periferias. Se o Estado reconhece que essas denúncias são verdadeiras, assume que fracassou. Então é mais fácil criminalizar do que resolver a questão”, explica. Para ela, a associação automática entre arte periférica e banditismo funciona como um mecanismo do Estado para desviar responsabilidade, mantendo o controle sobre os espaços culturais e perpetuando estigmas que limitam a expressão e a circulação da cultura da periferia.

A criminalização vai além das hostilidades pontuais. Ela contribui para a perpetuação de desigualdades, através da limitação de oportunidades de emprego e educação, e da criação de um sentimento de invisibilidade cultural. Além disso, afeta oportunidades de reconhecimento, como explica Dani Bruxa. “A galera já olha torto quando você diz que faz rap. Existe uma imagem construída de que rap é coisa de bandido, o que é um absurdo. Isso impede parcerias, acesso a espaços culturais e patrocínio. Às vezes, precisamos ‘adaptar’ linguagem ou visual só pra nos apresentar.”
A repressão à cultura periférica também influencia de forma profunda a autoestima e a sensação de pertencimento dos artistas. Para Camilla Anjos, que é produtora cultural, a atuação no hip hop expõe os corpos periféricos a um constante julgamento social. Segundo ela, a pressão para “não parecer com alguém que carrega as expressões sociais e culturais da periferia” revela um jogo de controle e poder, em que a aceitação do artista depende de sua capacidade de neutralizar sua própria identidade e manifestação cultural. Essa dinâmica evidencia como a marginalização afeta não apenas o acesso a espaços e oportunidades, mas também a experiência subjetiva de ser e existir no espaço urbano.

ENTRE EDITAIS E PALCOS IMPROVISADOS
Além da repressão e do preconceito, artistas e produtores também esbarram em outra barreira: a ausência de políticas públicas consistentes. Editais culturais, que poderiam fortalecer a cena, muitas vezes chegam de forma limitada, burocrática ou inacessível, dificultando ainda mais a profissionalização da arte periférica.
Para Luan Allen, diretor audiovisual e produtor cultural, os obstáculos enfrentados pelos produtores periféricos são desafios estruturais e institucionais que refletem desigualdades históricas na distribuição de recursos culturais. Segundo ele, “falta acesso a espaços adequados para realizar eventos, além da carência de equipamentos e infraestrutura técnica”. O financiamento, quando disponível, é irregular, e os editais existentes frequentemente se mostram “burocráticos ou insuficientes” para contemplar projetos periféricos de forma justa. Além disso, a dificuldade de diálogo entre produtores da periferia e órgãos públicos amplia o isolamento da cena, tornando a produção cultural ainda mais vulnerável à marginalização e à invisibilização social.

Essa percepção é reforçada por Dani Bruxa, que enxerga nos próprios critérios dos editais uma forma velada de censura. “É muito frustrante. Muitos editais exigem uma estética que não dialoga com a realidade da quebrada. Eles dizem que são ‘para todos’, mas na prática exigem um tipo de linguagem e formatação que exclui a gente. Parece que só aceitam arte da periferia se ela for ‘palatável’ pro centro. A arte que denuncia, que confronta, que bate de frente, quase nunca passa. É uma censura disfarçada de critério técnico”, conta .
Isabelly Lima, a Mali, reforça a crítica com base em sua própria experiência: “Já passei por editais e tenho a experiência desconfortável de, mesmo tendo sido contemplada, não ser tratada com o devido respeito que a cultura hip hop merece dentro dos aparelhos de políticas públicas oferecidas pelo governo, como forma de reconhecimento social e cultural que o hip hop e o rap têm.”
Mas as dificuldades não se restringem à relação com o Estado. Segundo Egildo Silva, conhecido profissionalmente como Kowalski, que é produtor cultural há mais de uma década, a própria recepção do público local e as disputas internas da cena são obstáculos a serem enfrentados. “Um dos desafios é o público, que não abraça de verdade sua regionalidade das letras no hip hop. Se for fazer uma pesquisa, os sergipanos ouvem todos que têm fama nacional, do trap e do rap, mas quantos conhecem e ouvem os nossos? Outro fator que vejo são os próprios agentes culturais e artistas, que são em sua maioria, tretados uns com os outros, o que impede que a construção chegue a mais lugares e lares”, relata.
Apesar disso, Kowalski lembra que, quando o diálogo com as comunidades é estabelecido, a receptividade é positiva. “Nos meus 10 anos produzindo dentro e às vezes fora do Santa Maria, nunca tive problemas com a população. Sempre que anunciamos um evento fazemos questão de entender onde estamos fazendo. Nem toda comunidade tem praça, mas a gente joga na rua, fala com a população e dá certo.”

Os relatos evidenciam que produzir arte periférica em Sergipe vai muito além do enfrentamento da repressão: envolve lidar com estruturas precárias, falta de apoio institucional e a necessidade constante de conquistar reconhecimento junto ao público local. A soma desses obstáculos reforça a urgência de iniciativas que garantam não apenas acesso a espaços e financiamento, mas também valorização e respeito à cultura produzida na quebrada.
PL 198/2025
O Projeto de Lei proposto na Assembleia Legislativa de Sergipe (Alese), pela deputada estadual Linda Brasil, o PL 198/2025, surge como uma resposta direta à criminalização da cultura periférica e às dificuldades enfrentadas por artistas e produtores da quebrada para atuar livremente em Sergipe. A proposta integra um movimento nacional articulado por parlamentares de esquerda.
Segundo a deputada, o objetivo é “a instituição de um programa de prevenção à censura, à arte e à cultura, no estado de Sergipe, através da criação de mecanismos de proteção, que garantam o respeito à liberdade de expressão e o acesso da população a eventos culturais”. O PL também propõe incentivar políticas públicas que fortaleçam a produção artística periférica, que promovam a inclusão nos eventos do calendário oficial e que ampliem o papel da educação na valorização da cultura local.
“Muitas vezes há uma movimentação que impede que a população em geral, participe de atividades e eventos promovidos pela periferia. Então, esse projeto quer estabelecer mecanismos de proteção, principalmente no que tem a ver com a censura, que a gente ainda vê muito na mídia e até mesmo nas ações de comunicação do Estado”, afirma a deputada. Entre os pontos centrais da proposta, também está a cobrança de autorização do poder público para a realização de shows e contratação de artistas, garantindo que a arte, a cultura e a produção periférica cheguem a diferentes municípios do país. A iniciativa pretende, assim, fortalecer esses segmentos artísticos e ampliar sua visibilidade e acesso.

O projeto ganha relevância diante de episódios recentes, como a prisão do MC Poze do Rodo, e da criação do PL anti-Oruam em São Paulo, que inspirou propostas semelhantes em outras capitais, incluindo Aracaju, com o PL 46/2025, de autoria do Pastor Diego (União Brasil). Essas iniciativas buscam restringir a contratação de artistas de rap e funk sob o argumento de apologia ao crime.
Para Jakeline Barros, mais conhecida como Negratha, rapper e produtora cultural com 25 anos de experiência, essas legislações podem ter impactos negativos profundos. “Os movimentos precisam entender o que significa a Lei Anti-Oruam e como ela pode impactar a cultura das periferias para compreender a proposta criada por Linda Brasil”, alerta.
Negratha aponta que a lei anti-Oruam levanta dúvidas sobre o que realmente constitui “apologia ao crime” e acaba limitando a liberdade artística. “É uma censura disfarçada, que atinge músicas, poemas e outras manifestações da periferia, enquanto artistas de outros gêneros circulam livremente. A lei ainda proíbe a presença de crianças em espaços com músicas ‘não permitidas’, mas isso é aplicado de forma desigual. Ana Castela, cantora de sertanejo, por exemplo, se apresenta acompanhada por crianças e faz referências sexualizadas em canções como ‘Roça em Mim’”, afirma.

Para Negratha, os impactos da Lei Anti-Oruam no Nordeste vão muito além da censura: a norma pode limitar a liberdade de expressão dos artistas, restringir a criação artística e dificultar o acesso a financiamentos para eventos culturais. “A lei pode afetar a economia local, porque muitas cidades dependem da cultura e do turismo para gerar receita. Além disso, ela prejudica a diversidade cultural e sufoca a criatividade de quem aborda temas sociais e políticos, comuns nas periferias”, explica a rapper e produtora cultural.
O PL 198/2025, portanto, busca criar uma contranarrativa legal, protegendo os artistas de práticas discriminatórias e incentivando a produção cultural de forma estruturada. No entanto, para que o PL avance na Alese, é necessária a pressão ativa da sociedade civil. “Para que o projeto seja colocado em pauta, é fundamental que movimentos sociais e a população se mobilizem”, destaca a deputada Linda Brasil.
Em um contexto em que leis anti-Oruam vêm sendo propostas em diversos municípios, a mobilização social se torna ainda mais importante, pois sem luta, políticas que criminalizam ou censuram a arte periférica podem se consolidar, restringindo a liberdade de expressão e aprofundando desigualdades históricas no acesso à cultura, ameaçando a diversidade que sustenta a produção cultural do país.
Por: Mateus Ferreira
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