Mais que trabalho, a relação de feirantes com as feiras livres cria vínculos identitários

Muvuca, vozes que se misturam, vai e vem de pessoas, bancas, balaios, mercados e um mar de veículos estacionados. Esse é o cenário da feira livre da cidade de Lagarto, Centro-Sul do Estado de Sergipe. A feira existe há mais de 100 anos, e ocorre em quatro dias da semana (segunda, quinta, sábado e domingo) sendo a segunda-feira o dia principal.
Ela é um organismo vivo da cultura lagartense, e não acontece em um local só. É diversa, se espalha por ruas, quiosques, barracas e mercados. São nesses espaços que muitos feirantes lagartenses ou de cidades vizinhas garantem o sustento de suas famílias, e têm rotinas de trabalho iniciadas cedo, em muitos casos antes do sol raiar.
A motivação inicial dos feirantes para trabalhar na feira é garantir o sustento da família. Faça chuva ou faça sol, esses trabalhadores madrugam para preparar a feira, enquanto a cidade ainda dorme. Quando chegam os primeiros fregueses, os feirantes já estão a postos, fazendo as propagandas de seus produtos e tentando chamar ao máximo a atenção de quem passa, sempre com intuito de levar o pão de cada dia.
Antes de o sol nascer
Acordar de madrugada, mais precisamente, à uma hora da manhã. Em seguida, organizar os produtos no carro, que ainda não foi quitado e seguir viagem com destino à feira. Essa é a rotina de João Peixoto e sua esposa Josefa Peixoto, em dias de feira na cidade de Lagarto e em cidades vizinhas. Os dois vivem em um assentamento localizado no município de Lagarto e há muito têm a feira como uma fonte de renda para o sustento da família.
O casal comercializa num pedacinho da Feira de Lagarto, a famosa e também tradicional, Feira das Trocas, onde são vendidos objetos usados. dona Zefinha e seu João estão nesse ramo há 40 anos. Ela começou ajudando o marido na comercialização de ferramentas usadas, depois passou a vender seus próprios produtos, que vão de bonecas a peças de vestuário.

Para que a feira comece cedo, feirantes como dona Zefinha e seu João, precisam começar sua preparação ainda antes. E essa realidade não atinge apenas a eles, o ato de acordar cedo, antes do sol nascer vai ser encontrado com frequência entre bancas e balaios da feira, é o que também acontece com Erli Menezes, que trabalha vendendo roupas há 32 anos.
Mesmo morando em uma rua não muito longe do seu local de trabalho, todas as segundas ela acorda entre três e quatro horas da madrugada, para organizar seus produtos e deixar tudo pronto antes das seis, quando a feira começa a se agitar. Assim como o começo da feira dita o horário para que Dona Erli acorde, a redução do movimento também indica quando é hora de se recolher.

Uma profissão hereditária
Além de ser uma profissão no que traz a necessidade do trabalhador madrugar e cobra dinamicidade e simpatia em sua rotina, ser feirante é um trabalho que atravessa o tempo, seja pela longevidade de muitos trabalhadores que estão na mesma função há mais de 40 anos, ou pelo aspecto geracional por se tratar de uma profissão que, em muitos casos é passada de pai para filho.
Na feira, são encontrados com frequência trabalhadores que se tornaram feirantes através da influência parental. Em muitas histórias, o que era uma ida à feira apenas para ajudar os pais se transformou num trabalho e na principal fonte de renda de muitas famílias. Essa é a história de Josefa Santos, ela tem 64 anos e trabalha com venda de verduras nas dependências do mercado Rosendo Ribeiro.
A feirante comercializa na feira de Lagarto desde criança quando ela e mais alguns irmãos iam ajudar o pai a vender os produtos. “Meu pai negociava, aí a gente já ia ‘mais’ ele. Ele cortava negócio de fumo, vendia fumo, tinha uma barraca de fumo, já eu e meus irmãos vendia maracujá, essas coisas (frutas), na frente da barraca dele.”

Relação com a freguesia
Trabalhar na feira demanda contato com o público, por isso ser ágil, organizado e, principalmente, exalar simpatia são ações determinantes na rotina desses trabalhadores. Seja nos mercados ou nas ruas, é natural encontrar feirantes usando humor e atenção como forma de atrair o freguês, esse é o caso de Taynara Silva. Ela trabalha para uma pastelaria que encaminha os funcionários para vender pasteis, sucos e refrigerantes em carrinhos espalhados por diversos pontos do centro da cidade.
O ponto que Taynara trabalha fica em frente a um supermercado, na área onde ocorre a feira. Ela realiza esse trabalho há dois anos, e embora não seja uma feirante, também depende do movimento da feira para conseguir o sustento que mantêm sua família. Seu horário de serviço é limitado ao período da manhã, ela chega às oito e sai às onze e meia.
A simpatia de Taynara lhe permitiu construir uma freguesia e também fazer amizades que, quase sempre, presenteiam a moça em dias de feira. Para a jovem, além do dinheiro, essa é uma das razões que a fazem continuar o trabalho na feira. “As vantagens é o dinheiro que você sempre vai tá tendo, pois é feira né? E também tem a vantagem de conhecer muitas pessoas, fazer muitas amizades, você é presenteado pelos clientes, em sua maioria do interior que traz manga, laranja, macaxeira, maracujá.”
Mais do que comercio
A feira de Lagarto não só é a fonte de renda de muitas famílias, mas também desempenha outras funções. Ela é espaço de formação da identidade e de organização da vida, para muitos é também a única realidade conhecida. É o que afirma, por exemplo, Joselito Nascimento, o feirante trabalha na feira desde os 10 anos de idade.“A gente vive da feira, a gente come da feira, eu arrumo da feira, levo pra dentro de casa da feira, não tem outro ramo."
O espaço de trabalho de Seu Zelito, como costuma ser chamado, é um dos quiosques que ficam localizados no fundo do Mercado da Farinha, onde são comercializadas frutas, hortaliças e até ovos de codorna. É um ambiente simples, antigo e pequeno. Seu Zelito acorda às 4:00 para estar na feira antes das 6:00 e isso se repete de segunda a sábado, fica até quando o movimento diminui e assim durante anos a feira foi e é responsável por trazer sustento para ele e sua família.
Em função do tamanho do quiosque, as mercadorias ficam expostas em frente ao espaço, e a parte interna serve como depósito para guardar as mercadorias e os objetos a serem usados na feira seguinte (foros: Viviane Silva)
Essa capacidade da feira, de ser mais do que um espaço de trabalho, também é explicada pelo professor da Universidade Federal de Sergipe, Ugo Maia. “Nas ciências sociais há a possibilidade da gente pensar no trabalho no contexto moderno, onde ele tem uma função que é econômica, mas o trabalho, em outros contextos, pode ser pensado em uma outra perspectiva representada por Marcel Mauss, onde o trabalho seria um fato social total.” Explica Ugo Maia.
De acordo com Ugo Maia, a feira pode ser pensada dessa forma não só pelo seu passado, diretamente associado com a igreja, mas por persistir como um grande acontecimento nas vidas dos que fazem e frequentam as feiras, principalmente quando nos referimos à realidade do interior
Um lugar terapêutico
Trabalhar na feira permite essa fuga da rotina para alguns, outros ainda encontram nela um lugar terapêutico que possibilita lidar melhor com os problemas da vida. Dona Zefinha, cuja rotina abriu essa reportagem, é uma dentre esses trabalhadores, ela tem a Feira, em especial a Feira das trocas, como uma ferramenta para lidar com os problemas da vida.
Ela conta que começou a sofrer com depressão durante e depois de uma gestação,o fato ocorreu há mais de 30 anos. Apesar do tempo, a feirante afirma que as cicatrizes não desapareceram e até hoje ela lida com os altos e baixos típicos da doença. Na feira, dona Zefinha menciona que se sente melhor, pois vendendo os seus produtos, preenche a mente e que prefere ir para a feira do que ficar em casa.
As vivências coletivas dos feirantes mencionados nessa reportagem permitiram a criação de vínculos identitários entre eles e entre eles e a Feira. Muitas dessas vivências começaram a serem construídas quando a cara da Feira era outra, antes das suas últimas transformações, os mercados mudaram, a organização nas ruas também, mas mesmo com as mudanças o feirante vai continuar a madrugar, a ter dinamicidade, a feira vai manter sua tradicionalidade e os vínculos que nela e com ela foram criados continuaram sendo parte da vida da vida desses trabalhadores.
Por: Viviane Silva
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