Não somos seres desconectados do mundo; vivemos nele e agimos conforme as nossas inclinações. Embora seja positivo e desejável expandir nossa visão, o que temos de real e concreto são as feridas vivas que herdamos da estrutura colonial, tanto como indivíduos quanto como sociedade. Isso não significa que estamos condenados à vulnerabilidade eterna, nem que somos definidos por ela.
Pelo contrário, quero destacar que as desigualdades — seja de gênero, raça, classe, ou até na forma como pensamos e nos alimentamos — não são algo livre, mas são moldadas por fatores históricos que se repetem. E claro, não existe uma forma única de olhar uma história. Se tirarmos os olhos do centro, olharmos através das lentes das periferias e tudo que nela se manifesta e por igual, se atentar ao que não se manifesta, estaremos diante da mesma história, mas de uma cosmovisão diferente.
Falar sobre pertencer, ser parte e viver conforme o mundo se manifesta pode parecer que estamos nos retratando apenas a uma perspectiva espiritual, o que em parte é. Mas, além dessa dimensão, que permite sentir a harmonia e o cuidado e a preservação pelo mesmo, também é importante considerar as dimensões política, histórica, ideológica, simbólica e o quanto somos forjados por nossas condições.
A união de todos esses fatores nos leva a questionar como são constituídas as desigualdades. Por que uns tem condições de deixar bem seus descendentes, mesmo com 100, 200 anos de distância, enquanto outros só procuram manter vivos e alimentados seus filhos? Ou por que enquanto uns guardam as sobras, outros reviram o lixo para matar a fome? E o direito à formação, educação, saúde, cultura, por que nem todos têm acesso? E o direito de andar livremente, sem que o medo de ser torturado, violado e porque não, amado, seja uma ameaça?
Bom, sabemos que tudo isso são instituições de um único sistema, que conhecemos na pele, na prática e no dia a dia. Esse sistema visa manter a concentração do poder e controlar os corpos, determinando como iremos viver ou até como vamos morrer, o que nos aproxima do conceito de Necropolítica, do filósofo camaronês Achille Mbembe. E esse sistema que nos torna totalmente dependentes na produção e reprodução da vida cotidiana, buscando sempre ter o mínimo de estabilidade e condições de existência, também nos individualiza e nos torna totalmente responsáveis por nossos fracassos, mesmo com as péssimas condições de sobrevivência, as quais enfrentamos diariamente.
Estamos diante de diversas violências - institucionalizadas, naturalizadas, de apagamento, mental -E, embora exista um sentimento de revolta, mesmo sem uma organização metodológica, essas violências são sentidas, provocadas e inflamadas pela falta de desenvolvimento, e somos guiados a aceitar passivamente essas agressões. Em contrapartida, embora a força da massificação da passividade ganhe em quantidade, por diversas questões que reúnem dinheiro, violência e poder, é errado dizer que não houve e não há movimentos de resistência a essas forças.
E digo mais: esses movimentos não estão tão distantes de nós quanto parece estar. Falamos de lutas, mas falamos também sobre existências enquanto forma de resistência. Impomos aqui então a diversidade dos nossos corpos, como uma forma de dificultar as duras tentativas de novamente “inferiorizar” enquanto cultura, povo, entidades.
Um importante agente que atua em confluência com as dinâmicas de resistência é a cultura, que também acompanha as dinâmicas do seu tempo e não se isenta da responsabilidade de desinformar e desarticular, podendo contribuir com a manutenção e fortalecimento das desigualdades. Com ela igualmente é possível fortalecer um povo, ao resgatar a história, os fatos, a realidade, a formação e informação e não menos importante, promovendo a alegria, o prazer, o lazer, a sensibilidade, a imaginação e a própria construção da identidade, importantes para o bem viver.
Desta maneira, a cultura se mostra enquanto agente potencializador de mudanças, que mantém viva e atual as memórias, que reorganiza a atuação do presente e por consequência, transforma o futuro. Podemos dizer que, também, pode ser a demonstração prática de Sankofa. E diante desse cruzamento que não só a arte, mas todo movimento cultural periférico e de resistência, em suas múltiplas formas de atuação, pertencimento e união são apostas para a descentralização do poder, onde cada atuação não é isolada do todo.
Sobre a autora
Yanka Belizário, mais conhecida como Luau, é Atriz e poeta independente, candomblecista filha de Ogun, graduanda do curso de Filosofia-UFS, Pesquisadora e militante do Coletivo Quilombo, além de ser cria da cidade de Socorro, onde desenvolve o trabalho com educação inclusiva.
Referências
MBEMBE, Achille. Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte.
Trad. Renata Santini. 3. ed São Paulo: N-1 edição, 2018.
NUN, José, “Superpoblación relativa, ejército industrial de reserva y masa marginal”, Buenos Aires, Argentina: Revista Latinoamericana de Sociología, 1969
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