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Carta à imprensa sergipana: Por mais representatividade e menos estigmas

Foto do escritor: Tatiane Macena Tatiane Macena


Este é um texto atípico! É um apelo em formato de carta, feito por pessoas que, por muito, foram  telespectadoras, leitoras e  ouvintes  do jornalismo sergipano e agora também podem pautar suas comunidades. Esse texto fala de jornalismo e de periferia, de ética e de profissionalismo, de gente e de  respeito. Escrevemos não só como moradores de periferias, mas como um coletivo de jornalistas com laços de pertencimento a comunidades não validadas pelo jornalismo tradicional e que, por isso, buscam promover uma comunicação de dentro para dentro e de dentro para fora a partir de um jornalismo subjetivo. 


Certa vez, lendo uma dissertação sobre o jornalismo sergipano, me deparei com o relato de uma visita de dois jovens, periféricos como nós, a um veículo que não existe mais. Os jovens fizeram um apelo simples, pediram que o jornal parasse de falar sobre o bairro Santa Maria: “Tudo que acontece de ruim em Sergipe, para este jornal, está na Terra Dura. Qualquer crime, roubo, estupro, bandido está na Terra Dura. Qualquer notícia ruim no jornal, mesmo não sendo da Terra Dura, é aquele bairro que é citado como comparação negativa”. 


Naquele dia atípico, os jovens pediram ao jornalista que parasse de usar o sensacionalismo para destacar acontecimentos negativos do Santa Maria, que na época ainda era chamado de Terra Dura. E não pediram por um incômodo que qualquer, mas porque o estigma os impediam de conseguir trabalho. Para conseguir um emprego, os jovens contaram que precisavam mentir em seus currículos, precisavam fingir que não eram do Santa Maria.


O relato foi feito ao jornalista em 2014, mas lamentavelmente continua atual. Se foi o jornal, continua a imprensa. A identificação com o texto é motivo dessa carta, viemos refazer o apelo, mas desta vez, queremos nos dirigir a toda a imprensa do estado, aos veículos e aos colegas, que pressionados pela pressão do tempo e orientados pelo hábito, acabam por não refletir sobre algumas das  questões que apresentaremos a seguir. 

 

Aprendemos na faculdade alguns princípios jornalísticos, entre eles, a ética jornalística e a pluralidade de vozes. Estes,  precisam ser repensados  na cobertura sobre a periferia feita pelos veículos sergipanos. E  não falamos isso por achismo ou vaidade, mas observando dados. Os dados são da amostra de um ano da cobertura jornalística direcionada ao Santa Maria, que, infelizmente não trouxe surpresa, mas mostrou uma preferência por temas violentos, abordagens superficiais e uma ignorância de vozes locais. 


O trabalho em questão, observa dois portais em particular, e os demais podem se questionar se agem de forma distinta, para nós, parece que não. A análise mostrou  que, quando o bairro Santa Maria é noticiado, os veículos priorizam valores notícia como tragédia e impacto, dando ênfase a aspectos negativos como violência, pobreza e problemas de infraestrutura. A riqueza da comunidade, seus projetos, sua cultura e sua gente, não têm o mesmo espaço.


Quanto à ética, a imprensa precisa refletir e admitir sobre a quem servem as cenas de violência usadas para exemplificar ocorridos. Imagens de pessoas feridas e violentadas, o retrato de choros e sofrimentos, assim como de condições nada dignas já não podem ser justificados pela afirmação de que são a realidade. Ao usar esse tipo de imagem, a imprensa não respeita os envolvidos diretamente no ocorrido, as famílias ou os amigos, que muitas vezes querem apagar da memória as cenas que os veículos não param de repetir como se não houvesse amanhã. Mais do que reagir aos problemas sociais, faz parte do compromisso ético do jornalista, pautar soluções, contribuir para uma compreensão ampliada dos problemas e proteger os vulneráveis.


A população, mencionada como vítima, não é consultada para refletir sobre a realidade local, interessam as versões das fontes oficiais, algumas vezes especialistas são ouvidos, mas a voz de dentro costuma ser ignorada, assim, a imprensa falha também na pluralidade. Diversas vezes, ao abordar assuntos em que a versão de sujeitos de lugares sem privilégio confronta a versão dada por uma fonte oficial, a imprensa sergipana dá ênfase à fala ‘oficial’. 


A respeito disso, fazemos as seguintes perguntas: por que a versão de alguns sujeitos é considerada mais valiosa que a de outros? Será que essa hierarquia ainda deve ter espaço no jornalismo contemporâneo? Pensamos que assim como a sociedade se molda com o tempo, a maneira de fazer jornalismo também deveria. Essas situações de privilegiar as versões de alguns e ignorar a de outros, atreladas ao sensacionalismo, fazem com que, a periferia não se sinta representada pela imprensa sergipana. 


É também por essa falta de representatividade que nasceu o Periféricos( www.periféricos jornalismo.com), um veículo que produz um jornalismo comprometido com a tentativa de fazer com que a comunidade periférica não seja considerada como fonte apenas quando os seus problemas estejam em evidência. Mas para além deste espaço é preciso ir além, por isso esta carta e, por isso, a necessidade de ouvir a comunidade. Para saber como os moradores da periferia se veem na mídia, fizemos algo pouco usual, perguntamos diretamente.


Espalhamos cartazes em locais diversos, e as respostas foram enérgicas. Em termos de porcentagem, 89,5% das pessoas responderam que o bairro e elas mesmas não são bem representadas. Não vou me estender sobre as respostas do questionário, se essa carta chegar até aí, e vocês tiverem interesse em analisar, trago no fim desse texto, o questionário aplicado para a comunidade com suas perguntas e respostas. Disponibilizo com a esperança de que a imprensa sergipana pare de enxergar como um local violento e sem opinião e possa pautar a cultura não só no bairro Santa Maria, mas também de outros bairros periféricos. 


Talvez, por pressões diversas e pela falta de interesse, assim como já ocorreu com diversas questões relacionadas à periferia, esse pedido seja ignorado, mas não podemos deixar de fazê-lo: parem de nos enxergar como objetos e lembrem que o jornalismo, antes de tudo, é sobre ouvir o que as fontes têm a dizer. Comecem a não só ouvir, mas a compreender o que é dito. Por gentileza, parem de nos taxar como violentos, sofredores e sem educação, parem e apenas  ouçam as nossas vozes. E parem de tratar as éticas jornalística e humana como questões negociáveis.


Referencias citadas no texto


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Projeto desenvolvido pela aluna Tatiane Macena como trabalho de conclusão do curso de jornalismo da Universidade Federal de Sergipe, sob orientação da professora Dra. Liliane Nascimento Feitoza.

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